A VISITA

A VISITA
Notas sobre o desenho como imagem nua

O meu pai faleceu em Maio de 2016, dezasseis anos depois dos primeiros sintomas da doença de Parkinson. Os tremores involuntários foram-se transformando numa rigidez muscular cada vez maior. A “paralisia agitada” do início da doença cedeu a uma imo­bilidade quase absoluta nos últimos anos, confinando-o por longos períodos à cama, dependente dos cuidados que a minha mãe e outros lhe prestavam. Em Fevereiro de 2006 entrou em falência respiratória, o que levou a uma traqueostomia definitiva. A partir deste momento, perdeu a capacidade de falar. Com a voz, perderam-se os dedos que existem na ponta das palavras.
Comecei a desenhá-lo de forma cada vez mais sistemática passados dois anos, ao ritmo da evolução da doença. Cada visita passou a ser marcada pelo tempo do desenho e pela quietude que a impossibili­dade da linguagem nos impunha. Este era também o modo dos desenhos: uma voz indirecta, que acolhe a voz dos outros.
Na representação de alguém que amamos, desenhar rapidamente se torna um acto de presença, uma forma de “estar aí”. Desenhador e desenhado chegam à imagem ao mesmo tempo em que esta é feita. Ficam suspensos numa relação espe­cular um com o outro. Por vezes, contudo, não tinha a certeza se ele me reconhecia enquanto o desenhava. Os olhos pareciam desligar-se das imagens exteriores. Os esta­dos de absorção, mesmo quando estava acordado, pareciam cada vez mais profundos.
Há uma urgência no desenho das coisas imóveis. Não a urgência que se sente quando as imagens se movem e o corpo nos foge, mas a urgência das coisas que podem desva­necer sem aviso prévio, colap­sar sem sair do lugar, e que tornam o olhar mais intenso e atento às pequenas contingências. Toda a representação é, no seu íntimo, o medo de uma perda ou o testemunho de um desaparecimento.
Cada visita foi-se tornando semelhante à visita anterior. Por o ter desenhado tantas vezes, os desenhos repetiam-se com meses ou anos de diferença: os mesmos traços, a mesma linha com que desenhava o contorno da boca aberta pela contração involuntária dos músculos, os tubos que o alimentavam e permitiam respirar, os mes­mos ângulos impostos pela posição da cama no quarto, a mesma duração. Há uma memória nos nossos gestos quando desenhamos que nada tem a ver com a memória das imagens. Está mais próxima da capacidade de um jogador de xadrez em memori­zar os movimentos da mão que ligam as peças no tabuleiro, e não a posição individual de cada peça.
Os desenhos foram ficando esquecidos nas gavetas e nos cadernos, sem qualquer ordem. Só recente­mente foram recuperados como uma acção em diferido, recodificada por um acontecimento posterior, cruzando dois momentos que sempre esti­veram ligados.
“A Visita” é uma selecção dos desenhos feitos durante os últimos oito anos da doença do meu pai, ao ritmo das visitas, como testemunhos que ligam uma soma dispersa de momentos. São desenhos que se mostram na condição de imagens nuas, na sua relação em bruto com o real.

 

Paulo Luís Almeida, ‘A Ilha’, 2018. Grafite em pó, lapiseira e aguarela sobre papel, 52 x 65 cm